As doenças raras, apesar de incomuns, são muitas e em conjunto afetam milhares de pessoas no mundo, incluindo cerca de 13 milhões de brasileiros. Por muitos anos as doenças raras permaneceram sem tratamento, mas com os avanços tecnológicos muitas puderam ser melhor estudadas, impulsionando o desenvolvimento de novos tratamentos.
Entenda como a genética auxiliou o desenvolvimento de tratamentos personalizados para doenças raras.
Doenças raras: como tratar?
Atualmente temos registros de mais de 6.000 doenças raras. Muitas delas foram identificadas em poucas pessoas e, por isso, ainda são necessários mais estudos para entendermos suas causas e sintomas. No entanto, centenas de doenças raras já foram bem caracterizadas e, hoje, já têm tratamento disponível ou em fase de desenvolvimento.
Estima-se que cerca de 95% das doenças raras ainda não possuam um tratamento eficaz aprovado.
O desenvolvimento de tratamentos para doenças raras pode ser bastante desafiador, tanto pelo número pequeno de pacientes, quanto pela complexidade das doenças: sinais e sintomas podem variar, mesmo entre os pacientes com a mesma condição.
Essa pluralidade na manifestação das doenças raras pode fazer com que os pacientes tenham respostas diferentes a um mesmo tratamento. Por isso, o tratamento personalizado das doenças raras é tão importante.
Medicamentos órfãos
Os medicamentos destinados à prevenção ou tratamento de doenças raras são chamados de “órfãos” porque se destinam a um público muito restrito e, portanto, despertam pouco interesse das indústrias farmacêuticas. O desenvolvimento de medicamentos órfãos costuma ser incentivado pelos governos de cada país. O desenvolvimento e aprovação dos medicamentos órfãos teve seu primeiro grande incentivo após a “Ato dos Medicamentos Órfãos” definido pela organização governamental americana FDA (Food and Drug Administration), em 1983. |
No caso de doenças genéticas o tratamento personalizado é ainda mais interessante. Como uma doença genética pode ser causada por mais de uma mutação, cada mutação pode levar a uma manifestação clínica diferente. Assim, pacientes com mutações diferentes podem apresentar sintomas distintos ou ter quadros de diferentes gravidades.
Cerca de 80% das doenças raras têm origem genética e podem ser passadas de uma geração para outra.
O desenvolvimento de tratamentos eficazes para doenças genéticas raras depende de conhecermos a base molecular que causa essa doença. E os avanços nas áreas de genética médica e genômica estão tornando o tratamento personalizado cada vez mais próximo da realidade.
Avanços na genética e genômica
A partir dos anos 2000, com o surgimento das técnicas de Sequenciamento de Nova Geração (NGS), muitas doenças genéticas puderam ser estudadas e diagnosticadas. Conhecendo as causas dessas doenças, os cientistas puderam então planejar tratamentos personalizados para os subgrupos de cada condição, tornando-os mais eficazes.
O grande avanço dos exames genéticos para diagnóstico de doenças raras permitiu que muitos pacientes e médicos encontrassem respostas mais claras sobre essas condições e que pesquisas fossem desenvolvidas para buscar os melhores tratamentos, desde medicamentos a terapias gênicas.
Medicamentos para doenças raras na era da genômica
Antes de conhecermos as causas das doenças genéticas raras, os tratamentos focavam em amenizar os sintomas. Como a causa do sintoma não era conhecida e, portanto, não tinha como ser o alvo do tratamento, a eficácia desses tratamentos era baixa.
Os erros inatos do metabolismo são bons exemplos de como o conhecimento sobre as causas genéticas foi fundamental para a definição de tratamentos mais efetivos. Esse grupo de doenças genéticas causa o mau funcionamento de vias metabólicas do nosso corpo, resultando em níveis alterados de algumas substâncias importantes para o bom funcionamento do organismo, pois alguns alimentos não são processados como deveriam.
A falha na via metabólica geralmente é resultado do mau funcionamento ou da ausência de alguma enzima, o que pode ser causado, por sua vez, por vários tipos diferentes de mutações no gene que codifica essa enzima, desde mutações em uma única base à deleções de trechos no DNA.
As deleções podem comprometer gravemente a produção da enzima a ponto de alguns pacientes não a produzirem. Nesses casos, além de evitar alguns alimentos (os que são processados pela enzima faltante), o paciente pode se beneficiar da suplementação dessa enzima.
No caso de mutações em uma única base, o resultado pode ser uma enzima produzida em baixas concentrações ou que tem um desempenho menor quando comparado com o de uma pessoa saudável. Alguns pacientes podem levar uma vida normal somente com a dieta restritiva ou usar medicamentos que melhorem o funcionamento dessa proteína.
Sabendo qual a causa genética da doença o paciente pode, juntamente com o seu médico, optar pelo melhor tratamento.
Hoje mais de 660 medicamentos órfãos já foram aprovados pela FDA nos Estados Unidos. Até 2019 a Anvisa aprovou mais de 70 medicamentos para tratamento de doenças raras no Brasil.
Terapias gênicas para doenças raras
Ao contrário dos medicamentos e suplementos que visam amenizar ou eliminar os sintomas das doenças raras, a terapia gênica foca em corrigir diretamente a mutação que causa a doença.
As terapias gênicas utilizam técnicas de edição genética e celular, como o CRISPR, por exemplo, para corrigir erros no nosso DNA. No caso das doenças raras, esse tipo de terapia vai trocar as mutações que causam a doença pela sequência saudável do gene ou, em alguns casos, eliminar o trecho mutado ou substituir por um trecho saudável.
Com essa correção, o paciente deixa de apresentar os sintomas característicos da doença e passa a ter uma vida saudável, muitas vezes sem necessitar de qualquer outro tipo de terapia ou medicamento.
As terapias gênicas existentes hoje ainda estão em fase experimental, mas apresentam resultados muito promissores! Diversas novas terapias estão sendo pesquisadas e podemos esperar mais resultados num futuro próximo.
Atualmente existem mais de 20 terapias genéticas aprovadas em diversos países, e mais de 1000 novas terapias em desenvolvimento.
1000 novas terapias até 2027
Em 2017 o Consórcio Internacional de Pesquisas em Doenças Raras (do inglês International Rare Diseases Research Consortium, IRDiRC) definiu uma meta ambiciosa: a aprovação de 1000 novas terapias para o tratamento de doenças raras dentro de 10 anos. A iniciativa prevê investimento e incentivo para a pesquisa de doenças raras e o desenvolvimento de novas terapias para tratar as milhares de doenças raras que permanecem sem tratamento aprovado. |
A genética no desenvolvimento de novas terapias para doenças raras
Diversas doenças raras já possuem tratamentos personalizados para atender melhor os pacientes com diferentes mutações genéticas. Veja os exemplos a seguir:
Atrofia Muscular Espinhal (AME)
A Atrofia Muscular Espinhal (AME) é uma doença neurológica que afeta gravemente os neurônios motores. A maioria dos pacientes apresenta AME tipo 1, que é grave, tem início na infância e apresenta expectativa de vida média de 2 anos quando não tratada.
Essa doença é causada por mutações no gene SMN1 que inviabilizam a produção de uma proteína chamada neurônio motor de sobrevivência (SMN). Essa proteína também pode ser produzida pelo gene SMN2, mas em poucas quantidades, por isso pacientes com mais de 3 cópias desse gene em seu DNA apresentam quadros clínicos menos graves, pois conseguem repor parte da proteína.
A fim de atender os casos mais graves de AME, os medicamentos Zolgensma® e Spinraza® foram aprovados no Brasil para o tratamento de pacientes diagnosticados com AME tipo 1 e 2.
Zolgensma® introduz uma cópia saudável do gene SMN1 nos neurônios motores, que passam a produzir quantidades suficientes da proteína SMN, retardando os sintomas da doença. Já o medicamento Spinraza® entrega um trecho curto de RNA que se liga ao mRNA (RNA mensageiro) transcrito do gene SMN2, aumentando a quantidade de proteína SMN produzida a partir desse gene.
Para ambos os tratamentos, os pacientes mostraram maior sobrevida sem a necessidade de ventilação artificial e alguns conseguiram realizar atividades como andar e se alimentar sem assistência, após os dois anos de idade.
Saiba mais sobre os impactos da genética no estudo, diagnóstico e tratamento da AME.
Fibrose Cística
A fibrose cística (FC) é uma doença genética caracterizada pela produção de um muco espesso que afeta o funcionamento de múltiplos órgãos, principalmente os pulmões e o pâncreas.
A doença é causada por mutações no gene CFTR, que codifica uma proteína que atua como um canal de controle do fluxo de cloreto e água nas células. Em pessoas com FC, o gene mutado leva à produção de uma proteína com funcionamento comprometido, resultando em um muco espesso e pegajoso em vários órgãos que causa os sintomas da doença.
Os pacientes com FC podem apresentar mutações muito diferentes, afetando tanto a gravidade da doença quanto o seu tratamento. Por isso, em 2020 o medicamento ivacaftor foi incorporado pelo SUS para tratamento de pacientes com algumas mutações específicas. Com o tratamento, os pacientes elegíveis têm um funcionamento mais controlado da proteína CFTR, minimizando os sintomas e aumentando a sobrevida.
A aprovação do medicamento no Brasil só foi possível após um grande estudo, feito em parceria com a Mendelics, para caracterizar a doença na população brasileira e entender qual a prevalência de cada mutação causadora da fibrose cística. Saiba mais como o sequenciamento genético possibilitou a incorporação do tratamento para a Fibrose Cística.
Doença Falciforme
Também conhecida como anemia falciforme, a doença é causada por uma mutação no gene HBB que codifica a hemoglobina, proteína importante para os glóbulos vermelhos do sangue. Essa mutação, que é a mesma na grande maioria dos pacientes, faz com que as células tenham um formato de foice que, além de não transportar oxigênio de forma eficiente, podem se acumular nos vasos sanguíneos impedindo a circulação do sangue.
Atualmente só é possível eliminar os sintomas da doença com o transplante de células-tronco de pessoas saudáveis, mas a escassez e dificuldade de encontrar doadores compatíveis torna esse procedimento inviável para grande parte dos pacientes. Com a terapia gênica seria possível corrigir a mutação nas células-tronco do próprio paciente.
Alguns estudos de terapia gênica para correção da doença falciforme já estão em andamento, inclusive no Brasil. O estudo liderado pelo Dr. Luiz Vicente Rizzo no Hospital Israelita Albert Einstein está desenvolvendo um tratamento em que as células-tronco dos pacientes são coletadas, editadas geneticamente com a tecnologia CRISPR e re-introduzidas para que produzam hemácias saudáveis.
Tratamentos semelhantes já estão sendo testados em ensaios clínicos com pacientes no exterior e os resultados são muito promissores: os pacientes tratados produzem mais hemácias e deixam de ter eventos vasculares. Essa mesma tecnologia também está em fase de teste para tratamento da beta talassemia com resultados semelhantes.
Epidermólise Bolhosa
A doença é causada por mutações em cerca de 25 genes que codificam proteínas importantes para a manutenção da integridade da pele. Nos pacientes com epidermólise bolhosa (EB) as camadas da pele não estão conectadas tão firmemente quanto em pessoas saudáveis, levando ao descolamento e formação de bolhas e feridas mesmo após estímulos leves. Até o momento não há tratamento eficaz para a doença.
Assim como para a doença falciforme, a terapia gênica pode trazer uma esperança para o tratamento e cura da epidermólise bolhosa, minimizando os sintomas e sequelas da doença. No caso da EB, as células geneticamente modificadas são as da pele do paciente, extraídas de regiões não afetadas pela doença e usadas para criar enxertos saudáveis que podem ser utilizados para cicatrização e regeneração das feridas.
Alguns estudos já estão em andamento com pacientes pediátricos e adultos e os resultados são muito promissores: recuperação de 80% da pele afetada por cerca de pelo menos dois anos após o procedimento.
As áreas de genética médica e terapias gênicas continuam avançando e veremos muitos novos tratamentos para doenças genéticas raras ao longo dos próximos anos.
Referências
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